sábado, 18 de novembro de 2006

[ tctp # 0006] LUGAR DA LÍNGUA ENTRE OS FACTOS HUMANOS. A SEMIOLOGIA.

[ Ferdinand de Saussure in Curso de Linguística Geral, Dom Quixote]

A língua, assim delimitada no conjunto dos factos de linguagem, é classificável como facto humano, ao passo que a linguagem o não é.
Acabamos de ver que a língua é uma instituição social; mas vários são os traços que a distinguem das outras instituições - políticas, jurídicas, etc. Para compreendermos a sua natureza especial, temos de fazer intervir uma nova ordem de factos.
A língua é um sistema de sinais para exprimir ideias e, portanto, comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às fórmulas de cortesia, às saudações militares, etc. Só que ela é o mais importante de todos estes sistemas.
Podemos portanto conceber uma ciência que estude a vida dos sinais dentro da vida social; ela formaria uma parte da psicologia social e, por conseguinte, da psicologia geral. Chamar-lhe-emos semiologia [do grego sémeîon, "sinal"]. Estudaria em que consistem os sinais, que leis os regem. Uma vez que ainda não existe, não podemos dizer o que será; mas tem direito à existência e o seu lugar está desde já determinado. A linguística não é mais do que uma parte dessa ciência geral, as leis que a semiologia descobrir serão aplicáveis à linguística, e esta achar-se-á assim ligada a um campo bem definido no conjuto dos factos humanos.
Compete ao psicólogo determinar o lugar exacto da semiologia; a tarefa é definir os elementos que fazem da língua um sistema especial no conjunto dos factos semiológicos. Retomaremos adiante esta questão; neste momento só insistiremos num ponto: se agora, pela primeira vez, pudemos conceder à linguística um lugar entre as ciências, é porque a ligamos à semiologia.
Porque razão esta não é ainda reconhecida como ciência autónoma, com objecto próprio como qualquer outra? É que caímos num ciclo vicioso: por um lado, nada é mais próprio que a língua para fazer compreender a natureza do problema semiológico; mas, para a colocarmos convenientemente, seria preciso estudarmos a língua em si mesma; ora, até agora sempre a abordamos em função de outra realidade, a partir de outros pontos de vista.
Em primeiro lugar, há a concepção superficial do grande publico: a língua não é mais que uma nomenclatura, o que impede qualquer investigação sobre a sua verdadeira natureza.
Em seguida, há o ponto de vista do psicólogo, que estuda o mecanismo do signo em cada indivíduo; é o método mais fácil, mas não conduz além da execução individual e não atinge o signo, que é social por natureza.
Ou então, quando um estudioso descobre que o signo deve ser encarado socialmente, só se interessa pelos traços da língua que a aproximam das outras instituições, das que dependem mais ou menos da nossa vontade; e desta forma se esquece o verdadeiro objectivo e se desprezam as características privativas dos sistemas semiológicos em geral e da língua em particular. Com efeito, o signo escapa sempre numa certa medida à vontade individual ou social: é esse o seu carácter essencial; mas é também o menos evidente.
Assim, esta característica só aparece claramente na língua, mas manifesta-se nos pormenores que menos se estudam, e, por isso, não se vê bem a necessidade duma ciência semiológica. Para nós, pelo contrário, o problema linguístico é acima de tudo semiológico, e o desenvolvimento da nossa teoria vai sempre buscar a sua significação a este facto importante. Se quisermos descobrir a verdadeira natureza da língua, temos de a encarar no que ela tem de comum com todos os outros sistemas do mesmo tipo; e alguns factores linguísticos que nos parecem muito importantes à primeira vista [por exemplo, o mecanismo do aparelho fonador], só devem ser considerados em segundo plano, se servirem apenas para distinguir a língua dos outros sistemas. Assim, além de fazer luz sobre o problema linguístico, pensamos que, tomando como signos os ritos, os costumes, etc., todos estes factos aparecerão numa outra perspectiva, e sentiremos a necessidade de agrupá-los na semiologia e de explicá-los pelas leis desta ciência.